terça-feira, 5 de agosto de 2008

Eco e Narciso

Os que se interessam por mitologia já devem ter lido o belíssimo mito de Eco e Narciso. Reproduzo rapidamente seu conteúdo.

Narciso era um belo jovem que, a despeito de despertar paixões em jovens e seres sobrenaturais como as ninfas, não as considerava dignas de seu amor, desprezando-as. Eco, por sua vez, era uma destas ninfas, que sentiu uma paixão avassaladora pelo jovem a primeira vista.

No entanto, quando do primeiro contato entre eles, Eco já era vítima da punição de Hera, que a impeliara a não falar nada por conta própria, mas apenas repetir as palavras que ouvia dos outros. Seguiu-se este pequeno diálogo entre eles:

- Há alguém aqui?- Aqui! - respondeu Eco. Narciso olhou em volta e não viu ninguém. Queria saber quem estava se escondendo dele, e quem era a dona daquela voz tão bonita.
- Vem - gritou.- Vem! - respondeu Eco.
- Por que foges de mim?- Por que foges de mim?- repetiu
- Eu não fujo! Vem, vamos nos juntar!- Juntar! - a donzela não podia conter sua felicidade ao correr em direção do amado que fizera tal convite.
Narciso, vendo a ninfa que corria em sua direção, gritou:- Afasta-te! Prefiro morrer do que te deixar me possuir!- Me possuir... - disse Eco.
(fonte da descrição que fizemos do diálogo http://hall_of_secrets.tripod.com/greciavaidade.htm).

A tragédia amorosa de Eco não poderia terminar de modo diferente: definhou em sua paixão, até que tudo o que restou dela foi sua voz, que até hoje responde aos que a chamam, e, como era seu costume, dando sempre a última palavra nas conversas.

Lembrei deste mito a propósito de um quadro de J.W. Watherhouse (Echo and Narcissus, disponível em http://www.johnwilliamwaterhouse.com/pictures/echo-and-narcissus-1903.html), e tentei imaginar possíveis significados, para além de sua aparente simplicidade e temática romântica. Eis alguns dos pensamento que me ocorreram:

1) Observo uma certa tendência, quer em amizades ou em relacionamentos amorosos, de se dizer sempre aquilo que agrada ao amigo ou ao amado, considerando que isso é o caminho mais eficiante de conquistar e manter sua simpatia;
2) Usualmente, essa tendência não é vista como algo negativo, mas como uma espécie de adulação favorável ao relacionamento que se inicia ou que se pretende uma continuidade;
3) Daí que eu tenha considerado que o mito pode nos oferecer um alerta: nem sempre dizer o que a outra pessoa espera é um caminho seguro, pois há situações em que isso pode parecer repulsivo ao outro, a quem nos dirigimos.

Tenho outras idéias em mente, mas gostaria de primeiro consultá-los, quer para saber o que pensam a respeito, quer para responder a perguntas de esclarecimento.

English version

The ones with some interests for mythology must have already had read the gorgeous myth of Echo and Narcissus. I reproduce its content quickly.

Narcissus was a beautiful young man that, despite of awaking passions in young and supernatural beings as the nymphs, didn't consider them worthy of its love, disdaining them. Echo, in turn, was one of these nymphs, that felt an overwhelming passion for this young man at first sight.

However, when the first contact between them took place, Echo was already victim of the punishment of Hera, that makes say nothing on proper account, but to only repeat the words heard from others. This is the small dialogue between them:

- Is there anybody here? - Here! - Echo answered. Narcissus looked in return and see nobody. He wanted to know who was hiding from him, and who was the owner of such a pretty voice.
- Come! - he cried out. - Come! - echo answered. - Why do you run away from me? - Why you run away from me? - she repeated - I'm not running away! Come, let's get together them! - Get together! - Echo couldn't contain its happiness when running in direction of the loved one. Narcissus, seeing the nymph that ran in its direction, cried out: - Move away! I prefer to die, then let you possess me! To possess - Me… - Echo said. (Source of the description that I've made of this dialogue http://hall_of_secrets.tripod.com/greciavaidade.htm).

The loving tragedy of Echo couldn't finish in a different way: she meagered in its own passion, until everything remained was her voice, that until today answers who called her, and, as like hers custom, giving always the last word in the colloquies.

I remembered this myth because of a J.W. Watherhouse's picture (Echo and Narcissus, available in http://www.johnwilliamwaterhouse.com/pictures/echo-and-narcissus-1903.html), and I tried to figure out possible meanings, beyond its apparently simplicity and romantic thematic. Here it is some of the thought occurred:

1) I observe a certain trend, that in friendships or loving relationships, of always saying what it pleases to the friend or the loved one, considering that this is the efficient way to conquer and to keep its affection;
2) Usually, this trend isn't seen as something negative, but as a species of compliment favorable to the relationship, that initiates or that continuities is intended;
3) From there I have considered that the myth can offer a kind of alert: nor always to say what another person wants to hear is a safe way, therefore it has situations where this can seem repulsive to the other, the one who we direct yourselves to.

I have other ideas in my mind, but it would like first consulting you, to know what you think about it, or to answer questions of clarification.

7 comentários:

Anônimo disse...

Creio que a lição do mito é que o ser humano abriga em si uma espécie de casamento (mais bem sucedido em certos casos, menos em outros) entre Eco e Narciso. Por um lado, ele é esse animal social, incapaz de viver longe de outros iguais a ele e sempre tendente a repetir os gestos e palavras dominantes para reforçar seu pertencimento ao grupo. Por outro lado, ele é esse indissolúvel indivíduo, único no seu grupo, irrepetível no tempo e no espaço, carregado de sua própria biografia e profundamente apaixonado por si mesmo. O mito mostra que cada um de nós está condenado a perecer seja por ser uma Eco sem identidade, incapaz de comunicar algo de seu ao grupo, seja por ser um Narciso autocêntrico, incapaz de deixar-se tocar e possuir pelo outro. Eco é o impulso social, mimético, gregário, absorvente. Narciso é o impulso identitário, anti-social, isolante, anti-absorvente. A metáfora do amor entre eles é como a metáfora da relação entre Pênia e Poros, no mito platônico de "O Banquete".

Débora Aymoré disse...

André, achei seu comentário muito interessante. Acho que quando postei minha interpretação do mito, pensava no diálogo com o outro e não na relação entre dois elementos internos. Não lembro da relação entre Pênia e Poros. Se você puder escreva um pouco sobre isso, ok?

Anônimo disse...

Pênia é a deusa da pobreza, da carência, da necessidade. Póros é o deus da riqueza, da abundância, da saciação. Numa festa em que Póros se havia embebedado, Pênia aoroveitou-se para gerar com ele um filho, exatamente Eros, que se mostraria ser resultante de uma mistura entre eles. O amor, assim, une a dor da carência de Pênia com a lembrança do prazer da saciação de Póros e resulta nesse constante sentir-falta-do-que-não-se-tem e sentir-saudade-do-que-nunca-se-teve.

Linda Cavalcanti Lobato disse...

Acho que essa busca do sentido dos mitos deve tomar o cuidado de não desbordar numa racionalização prematura, infundada e anacrônica. Sou das que pensam que os mitos são belos por si mesmos, sem ser preciso que nenhuma interpretação ordenadora venha revelar uma profunda lição de sabedoria prática escondida em suas personagens e histórias. Isso não quer dizer que não tenham um sentido prático, apenas que são belos independentemente dele. Mas seus autores e adaptadores certamente tinham alguma intenção prática com ele, além de afastar as crianças das fontes de água e explicar-lhes por que as cavernas devolviam ao visitante o som que acabara de emitir. Penso que, quando a Débora levantou a questão do sentido, ela tenha querido referir-se ao sentido autoral. Sendo assim, teríamos que situar o mito no contexto das preocupações típicas dos gregos do período pré-homérico. Por isso vejo a hipótese do conflito entre identidade e massificação como uma projeção para um mito grego de uma preocupação moderna. Somos nós que nos preocupamos em ser únicos num mundo social que nos pressiona a ser uniformes. Esse é um desafio nosso e está presente nos nossos mitos, que são os romances best-seller e filmes blockbuster. Mas não é uma questão grega. Arrisco dizer que a lição prática, para os homens, era que não se devia ser vaidoso ao ponto de rejeitar o amor dos outros e saciar-se apenas do amor por si mesmo, sob pena de solidão; e, para as mulheres, que não se devia dar ao outro apenas aquilo que ele mesmo já tem, sob pena de rejeição. Talvez alguma ordem de mistérios tivesse uma versão não-vulgar do mito, à qual atribuisse um sentido mais profundo e eespiritual, mas, no que se refere à mitologia e à moralidade gregas populares, não apostaria numa mensagem mais elaborada que aquela.

Anônimo disse...

Bom, a Débora disse "pensei em possíveis significados", o que não nos vincula de modo algum ao sentido pretendido pelo autor (se é que cabe falar em autor quando a obra é popular e anônima). Fora isso, não dispomos de informação suficiente sobre a sociedade grega pré-homérica (assumindo que Eco e Narciso não seja uma invenção posterior) e sobre que tipos de sentidos práticos atribuíam a seus mitos. Por fim, parece-me que se deve optar pelo sentido capaz de tornar a obra mais atraente e fértil, e o sentido que a Linda atribuíu a ela tem certo apelo antropológico, mas não mais que isso, porque carece de valor estético e prático para os tempos atuais.

Débora Aymoré disse...

Acho que quando me referia a sentidos, pensava em que significado podemos retirar deste mito para a nossa vida cotidiana, apesar de o mesmo não pertencer historicamente a nossa cultura. Parece-me que ele está imbuído de uma certa dose de moralidade, afinal, por que o autor teria escolhido um final trágico para Eco e Narciso? Aparentemente, ele nos informa que, quer a conduta de tentar fazer-se amar pela demonstração de igualdade com o outro, quer amar-se demasiadamente, são atitudes erradas. De minha parte gostaria de reconhecer os motivos deste autor para visualizar se concordo com ele e se devo prestar atenção nestes mesmos elementos, evitando ter condutadas como duas as acima mencionadas.
Considero que nós os três concordamos com o fato de que não é apenas o texto literal do mito que merece nossa atenção. Eu, particularmente acho que, mesmo "forçando" um significado que pode não ser o mesmo de um grego antigo, vejo uma certa utilidade nestas tentativas de interpretação.

Linda Cavalcanti Lobato disse...

Vejam só. Acho que os mitos revelam facetas universais sobre a natureza humana. Sendo assim, a questão da atualidade não está em jogo. Se eles têm um sentido e se o descobrimos, ele certamente se aplica a nós tanto quanto se aplicava ao grego ou à grega dos tempos pré-homéricos. Acho também que a interpretação de mitos não pode deixar de ser uma interpretação estética. Se ela se torna apenas uma interpretação psicológica, então só enxergaremos neles as "verdades" psicológicas em que já acreditamos. Descobrir o sentido que uma coisa tem é diferente de atribuir-lhe um sentido que nos pareça bom. Em que pese os pós-modernos pensarem diferente. O pressuposto da interpretação é a objetividade do sentido e essa quer dizer que ele está lá antes mesmo de o descobrirmos, quer dizer que ele é o que é, e eventualmente pode nos surpreender, desapontar ou confundir. Se isso não ocorre, se todo sentido é uma reafirmação do mesmo, um "eco narcísico" de nossas próprias convicções, então não estamos interpretando, estamos apenas projetando crenças. Quando falo de interpretação estética, quero dizer a descoberta de um sentido que torne o mito ao mesmo tempo belo, revelador e sábio. Desses três, quero enfatizar o "belo". Supor que o criador (individual ou coletivo, identificado ou anônimo, tanto faz) do mito concebeu Eco como uma personagem que era tão carente de personalidade que não fazia nada além de repetir as falas dos outros e Narciso como uma personagem que era tão cheia de si que não podia amar ninguém outro é fazer desse criador um autor pueril, um narrador que apela a personagens rasos e estereotipados, a metáforas óbvias e diretas, a enredos de fábula infantil. Isso empobrece a beleza do mito. O mito há que ser mais rico, complexo, nuançado, profundo, sábio que um conto de fadas banal. É a diferença abismal que se encontra entre Édipo e História sem Fim, entre A Divina Comédia e O Labirinto do Fauno, ou seja, entre histórias colossais e arremedos banais dessas histórias. Por isso penso que deveríamos seguir investigando o sentido desse mito, tentando ir mais fundo em busca de um sentido que o torne verdadeiramente uma história colossal, em vez de uma metáfora pobre sobre carências e excessos de personalidade.